Capítulo
III : Bertram
Livro: Noite na
taverna- Álvares de Azevedo
But why should I for others groan,
When none will sigh for me!
Childe Harold, I. Byron
When none will sigh for me!
Childe Harold, I. Byron
Um outro conviva se levantou.
Era uma cabeça ruiva, uma tez
branca, uma daquelas criaturas fleumáticas que não hesitarão ao tropeçar num
cadáver para ter mão de um fim.
Esvaziou o copo cheio de vinho, e
com a barba nas mãos alvas, com os olhos de verde-mar fixos, falou:
— Sabeis, uma mulher levou-me a
perdição. Foi ela quem me queimou a fronte nas orgias, e desbotou-me os lábios
no ardor dos vinhos e na moleza de seus beijos: quem me fez devassar pálido as
longas noites de insônia nas mesas do jogo, e na doidice dos abraços convulsos com
que ela me apertava o seio! Foi ela, vós o sabeis, quem fez-me num dia ter três
duelos com meus três melhores amigos, abrir três túmulos àqueles que mais me
amavam na vida — e depois, depois sentir-me só e abandonado no mundo, como a
infanticida que matou o seu filho, ou aquele Mouro infeliz junto a sua
Desdêmona pálida!
Pois bem, vou contar-vos uma
história que começa pela lembrança desta mulher...
Havia em Cadiz uma donzela...
linda daquele moreno das Andaluzas que não há vê-las sob as franjas da mantilha
acetinada, com as plantas mimosas, as mãos de alabastro, os olhos que brilham e
os lábios de rosa d'Alexandria sem delirar sonhos delas por longas noites
ardentes!
Andaluzas! sois muito belas! se o
vinho, se as noites de vossa terra, o luar de vossas noites, vossas flores,
vossos perfumes são doces, são puros, são embriagadores, vos ainda o sois mais!
Oh! por esse eivar a eito de gozos de uma existência fogosa nunca pude
esquecer-vos!
Senhores! aí temos vinho de
Espanha, enchei os copos: — à saúde das Espanholas!...
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Amei muito essa moça, chamava-se
Ângela. Quando eu estava decidido a casar-me com ela, quando após das longas
noites perdidas ao relento a espreitar-lhe da sombra um aceno, um adeus, uma
flor, quando após tanto desejo e tanta esperança eu sorvi-lhe o primeiro beijo,
tive de partir da Espanha para Dinamarca onde me chamava meu pai.
Foi uma noite de soluços e
lágrimas, de choros e de esperanças, de beijos e promessas, de amor, de
voluptuosidade no presente e de sonhos no futuro... Parti. Dois anos depois foi
que voltei. Quando entrei na casa de meu pai, ele estava moribundo; ajoelhou-se
no seu leito e agradeceu a Deus ainda ver-me, pôs as mãos na minha cabeça,
banhou-me a fronte de lágrimas — eram as últimas — depois deixou-se cair, pôs
as mãos no peito, e com os olhos em mim murmurou: Deus!
A voz sufocou-se-lhe na garganta:
todos choravam.
Eu também chorava, mas era de
saudades de Ângela...
Logo que pude reduzir minha
fortuna a dinheiro pus-la no banco de Hamburgo, e parti para a Espanha.
Quando voltei. Ângela estava
casada e tinha um filho...
Contudo meu amor não morreu! Nem
o dela!
Muito ardentes foram aquelas
horas de amor e de lágrimas, de saudades e beijos, de sonhos e maldições pare
nos esqueceremos um do outro.
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Uma noite, dois vultos alvejavam
nas sombras de um jardim, as folhas tremiam ao ondear de um vestido, as brisas
soluçavam aos soluços de dois amantes, e o perfume das violetas que eles
pisavam, das rosas e madressilvas que abriam em torno deles era ainda mais doce
perdido no perfume dos cabelos soltos de uma mulher...
Essa noite — foi uma loucura!
foram poucas horas de sonhos de fogo! e quão breve passaram! Depois a essa
noite seguiu-se outra, outra... e muitas noites as folhas sussurraram ao roçar
de um passo misterioso, e o vento se embriagou de deleite nas nossas frontes
pálidas...
Mas um dia o marido soube tudo:
quis representar de Otelo com ela. Doido!...
Era alta noite: eu esperava ver
passar nas cortinas brancas a sombra do anjo. Quando passei, uma voz chamou-me.
Entrei. — Ângela com os pés nus, o vestido solto, o cabelo desgrenhado e os
olhos ardentes tomou-me pela mão... Senti-lhe a mão úmida.... Era escura a
escada que subimos: passei a minha mão molhada pela dela por meus lábios .
Tinha saibo de sangue.
— Sangue, Ângela! De quem é esse
sangue?
A Espanhola sacudiu seus longos
cabelos negros e riu-se.
Entramos numa sala. Ela foi
buscar uma luz, e deixou-me no escuro.
Procurei, tateando, um lugar para
assentar-me: toquei numa mesa. Mas ao passar-lhe a mão senti-a banhada de
umidade: além senti uma cabeça fria como neve e molhada de um líquido espesso e
meio coagulado. Era sangue...
Quando Ângela veio com a luz, eu
vi... Era horrível!... O marido estava degolado.
Era uma estátua de gesso lavada
em sangue... Sobre o peito do assassinado estava uma criança de bruços. Ela
ergueu-a pelos cabelos... Estava morta também: o sangue que corria das veias
rotas de seu peito se misturava com o do pai!
— Vês, Bertram, esse era o meu
presente: agora será, negro embora, um sonho do meu passado. Sou tua e tua só.
Foi por ti que tive força bastante para tanto crime... Vem, tudo esta pronto,
fujamos. A nós o futuro!
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Foi uma vida insana a minha com
aquela mulher! Era um viajar sem fim. Ângela vestia-se de homem: era um formoso
mancebo assim. No demais ela era como todos os moços libertinos que nas mesas
da orgia batiam com a taça na taça dela. Bebia já como uma inglesa, fumava como
uma Sultana, montava a cavalo como um Árabe, e atirava as armas como um
Espanhol.
Quando o vapor dos licores me
ardia a fronte ela ma repousava em seus joelhos, tomava um bandolim e me
cantava as modas de sua terra...
Nossos dias eram lançados ao sono
como pérolas ao amor: nossas noites sim eram belas!
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Um dia ela partiu: partiu, mas
deixou-me os lábios ainda queimados dos seus, e o coração cheio de gérmen de
vícios que ela aí lançara. Partiu. Mas sua lembrança ficou como o fantasma de
um mau anjo perto de meu leito.
Quis esquecê-la no jogo, nas
bebidas, na paixão dos duelos. Tornei-me um ladrão nas cartas, um homem perdido
por mulheres e orgias, um espadachim terrível e sem coração.
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Uma noite eu caíra ébrio as
portas de um palácio: os cavalos de uma carruagem pisaram-me ao passar e
partiram-me a cabeça de encontro à lájea. Acudiram-me desse palácio. Depois
amaram-me: a família era um nobre velho viúvo e uma beleza peregrina de dezoito
anos. Não era amor de certo o que eu sentia por ela... Não sei o que foi... Era
uma fatalidade infernal. A pobre inocente amou-me; e eu, recebido como o
hóspede de Deus sob o teto do velho fidalgo, desonrei-lhe a filha, roubei-a,
fugi com ela... E o velho teve de chorar suas cãs manchadas na desonra de sua
filha, sem poder vingar-se.
Depois enjoei-me dessa mulher. A
saciedade é um tédio terrível. Uma noite que eu jogava com Siegfried — o
pirata, depois de perder as últimas jóias dela, vendi-a.
A moça envenenou Siegfried logo
na primeira noite, e afogou-se...
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Eis aí quem eu sou: se quisesse
contar-vos longas histórias do meu viver, vossas vigílias correriam breves
demais…
Um dia — era na Itália — saciado
de vinho e mulheres eu ia suicidar-me A noite era escura e eu chegara só na
praia. Subi num rochedo: daí minha última voz foi uma blasfêmia, meu último
adeus uma maldição, meu último... digo mal, porque senti-me erguido nas águas
pelo cabelo.
Então na vertigem do afogo o
anelo da vida acordou-se em mim. A princípio tinha sido uma cegueira, uma nuvem
ante meus olhos, como aos daquele que labuta na trevas. A sede da vida veio
ardente: apertei aquele que me socorria: fiz tanto, em uma palavra, que, sem
querê-lo, matei-o. Cansado do esforço desmaiei...
Quando recobrei os sentidos
estava num escaler de marinheiros que remavam mar em fora. Aí soube eu que meu
salvador tinha morrido afogado por minha culpa. Era uma sina, e negra; e por
isso ri-me; ri-me, enquanto os filhos do mar choravam.
Chegamos a uma corveta que estava
erguendo âncora.
O comandante era um belo homem.
Pelas faces vermelhas caiam-lhe os crespos cabelos loiros onde a velhice
alvejava algumas cãs.
Ele perguntou-me:
— Quem és?
— Um desgraçado que não pode
viver na terra, e não deixaram morrer no mar.
— Queres pois vir a bordo?
— A menos que não prefirais
atirar-me ao mar.
— Não o faria: tens uma bela
figura. Levar-te-ei comigo. Servirás...
— Servir!?...— e ri-me: depois
respondi-lhe frio: deixai que me atire ao mar...
— Não queres servir? queres então
viajar de braços cruzados?
— Não: quando for a hora da
manobra dormirei: mas quando vier a hora do combate ninguém será mais valente
do que eu...
— Muito bem: gosto de ti, disse o
velho lobo do mar. Agora que estamos conhecidos Dize-me teu nome e tua
história.
— Meu nome é Bertram. Minha
história? escutai: o passado é um túmulo! Perguntai ao sepulcro a história do
cadáver cujo guarda o segredo... e ele dir-vos-a apenas que tem no seio um
corpo que se corrompe! lereis sobre a lousa um nome — e não mais!
O comandante franziu as
sobrancelhas, e passou adiante para comandar a manobra.
O comandante trazia a bordo uma
bela moça. Criatura pálida, parecera a um poeta o anjo da esperança adormecendo
esquecido entre as ondas. Os marinheiros a respeitavam: quando pelas noites de
lua ela repousava o braço na amurada e a face na mão aqueles que passavam junto
dela se descobriam respeitosos. Nunca ninguém lhe vira olhares de orgulho, nem
lhe ouvira palavras de cólera: era uma santa.
Era a mulher do comandante.
Entre aquele homem brutal e
valente, rei bravio ao alto mar, esposado, como os Doges de Veneza ao
Adriático, à sua garrida corveta — entre aquele homem pois e aquela madona
havia um amor de homem como palpita o peito que longas noites abriu-se às luas
do oceano solitário, que adormeceu pensando nela ao frio das vagas e ao calor
dos trópicos, que suspirou nas horas de quarto, alta noite na amurada do navio,
lembrando-a nos nevoeiros da cerração, nas nuvens da tarde… Pobres doidos! parece
que esses homens amam muito! A bordo ouvi a muitos marinheiros seus amores
singelos: eram moças loiras da Bretanha e da Normandia, ou alguma espanhola de
cabelos negros vista ao passar sentada na praia com sua cesta de flores, ou
adormecida entre os laranjais cheirosos, ou dançando o fandango lascivo nos
bailes ao relento! Houve-as... junto a mim, muitas faces ásperas e tostadas ao
sol do mar que se banharam de lágrimas...
Voltemos a história. — O
comandante a estremecia como um louco: — um pouco menos que a sua honra, um
pouco mais que sua corveta.
E ela!?... ela no meio de sua
melancolia, de sua tristeza e sua palidez, ela sorria as vezes quando cismava
sozinha, mas era um sorrir tão triste que doía. Coitada!
Um poeta a amaria de joelhos. Uma
noite — de certo eu estava ébrio — fiz-lhe uns versos. Na lânguida poesia, eu
derramara uma essência preciosa e límpida que ainda não se poluíra no mundo...
Bofé que chorei quando fiz esses
versos. Um dia, meses depois, li-os, ri-me deles e de mim; e os atirei ao mar...
Era a última folha da minha virgindade que lançava ao esquecimento...
Agora, enchei os copos: o que vou
dizer-vos é negro, e uma lembrança horrível, como os pesadelos no Oceano.
Com suas lágrimas, com seus
sorrisos, com seus olhos úmidos e os seios intumescidos de suspiros, aquela
mulher me enlouquecia as noites. Era como uma vida nova que nascia cheia de
desejos, quando eu cria que todos eles eram mortos como crianças afogadas em
sangue ao nascer.
Amei-a: por que dizer-vos mais?
Ela amou-me também. Uma vez a luz ia límpida e serena sobre as águas, as nuvens
eram brancas como um véu recamado de pérolas da noite, o vento cantava nas
cordas. Bebi-lhe na pureza desse luar, ao fresco dessa noite, mil beijos nas
faces molhadas de lágrimas, como se bebe o orvalho de um lírio cheio. Aquele
seio palpitante, o contorno acetinado, apertei-os sobre mim...
O comandante dormia
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Uma vez ao madrugar o gajeiro
assinalou um navio. Meia hora depois desconfiou que era um pirata...
Chegávamos cada vez mais perto.
Um tiro de pólvora seca da corveta reclamou a bandeira. Não responderam. Deu-se
segundo: nada. Então um tiro de bala foi cair nas águas do barco desconhecido
como uma luva de duelo. O barco que até então tinha seguido rumo oposto ao
nosso e vinha proa contra nossa proa virou de bordo e apresentou-nos seu flanco
enfumaçado: um relâmpago correu nas baterias do pirata, um estrondo
seguiu-se... e uma nuvem de balas veio morrer perto da corveta.
Ela não dormia, virou de bordo:
os navios ficaram lado a lado. À descarga do navio de guerra o pirata
estremeceu como se quisesse ir a pique.
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O pirata fugia: a corveta deu-lhe
caça: as descargas trocaram-se então mais fortes de ambos os lados.
Enfim o pirata pareceu ceder.
Atracaram-se os dois navios como para uma luta. A corveta vomitou sua gente a
bordo do inimigo. O combate tornou-se sangrento — era um matadouro!... o chão
do navio escorregava de tanto sangue, o mar ansiava cheio de escumas ao boiar
de tantos cadáveres. Nesta ocasião sentiu-se uma fumaça que subia do porão. O
pirata dera fogo às pólvoras... Apenas a corveta por uma manobra atrevida pôde
afastar-se do perigo. Mas a explosão fez-lhe grandes estragos. Alguns minutos
depois o barco do pirata voou pelos ares. Era uma cena pavorosa ver entre
aquela fogueira de chamas, ao estrondo da pólvora, ao reverberar deslumbrador
do fogo nas águas, os homens arrojados ao ar irem cair no oceano.
Uns a meio queimados se atiravam
a água, outros com os membros esfolados e a pele a despegar-se-lhes do corpo
nadavam ainda entre dores horríveis e morriam torcendo-se em maldições.
A uma légua da cena do combate
havia uma praia bravia, cortada de rochedos Aí se salvaram os piratas que
puderam fugir.
E nesse tempo enquanto o
comandante se batia como um bravo, eu o desonrava como um covarde.
Não sei como se passou o tempo
todo que decorreu depois. Foi uma visão de gozos malditos!... eram os amores de
Satã e de Eloá, da morte e da vida, no leito do mar.
Quando acordei um dia desse
sonho, o navio tinha encalhado num banco de areia: o ranger da quilha a morder
na areia gelou a todos... Meu despertar foi a um grito de agonia...
— Olá, mulher, taverneira
maldita, não vês que o vinho acabou-se?
Depois foi um quadro horrível!
Éramos nós numa jangada no meio do mar. Vós que lestes o Don Juan, que fizestes talvez
daquele veneno a vossa Bíblia, que dormistes as noites da saciedade como eu,
com a face sobre ele e com os olhos ainda fitos nele, vistes tanta vez
amanhecer, sabeis quanto se côa de horror ante aqueles homens atirados ao mar,
num mar sem horizonte, ao balanço das águas, que parecem sufocar seu escárnio
na mudez fria de uma fatalidade!
Uma noite, a tempestade veio...
apenas houve tempo de amarrar nossas munições... Fora mister ver o Oceano
bramindo no escuro como um bando de leões com fome, pare saber o que é a
borrasca!... fora mister vê-la de uma jangada à luz da tempestade, às
blasfêmias dos que não crêem e maldizem, às lágrimas dos que esperam e
desesperam, aos soluços dos que tremem e tiritam de susto como aquele que bate
a porta do nada... E eu, eu ria: era como o gênio do ceticismo naquele deserto.
Cada vaga que varria nossas tábuas descosidas arrastava um homem, mas cada vaga
que me rugia aos pés parecia respeitar-me. Era um Oceano como aquele de fogo,
onde caíram os anjos perdidos de Milton — o cego: quando eles passavam
cortando-as a nado, as águas do pântano de lava se apertavam: a morte era para
os filhos de Deus, não pare o bastardo do mal!
Toda aquela noite, passei-a com a
mulher do comandante nos braços. Era um himeneu terrível aquele que se
consumava entre um descrido e uma mulher pálida que enlouquecia: o tálamo era o
oceano, a escuma das vagas era a seda que nos a alcatifava o leito. Em meio
daquele concerto de uivos que nos ia ao pé, os gemidos nos sufocavam e nós rolávamos
abraçados, atados a um cabo da jangada, por sobre as tábuas...
Quando a aurora veio, restávamos
cinco: eu, a mulher do comandante, ele e dois marinheiros…
Alguns dias comemos umas bolachas
repassadas da salsugem da água do mar. Depois tudo o que houve de mais horrível
se passou...
— Por que empalideces, Solfieri!
a vida e assim. Tu o sabes como eu o sei. O que é o homem? é a escuma que ferve
hoje na torrente e amanha desmaia, alguma coisa de louco e movediço como a
vaga, de fatal como o sepulcro! O que é a existência? Na mocidade é o
caleidoscópio das ilusões, vive-se então da seiva do futuro. Depois
envelhecemos: quando chegamos aos trinta anos e o suor das agonias nos
grisalhou os cabelos antes do tempo e murcharam, como nossas faces, as nossas
esperanças, oscilamos entre o passado visionário e este amanhã do velho, gelado e ermo despido como
um cadáver que se banha antes de dar a sepultura! Miséria! loucura!
— Muito bem! miséria e loucura!
interrompeu uma voz.
O homem que falara era um velho.
A fronte se lhe descalvara e longas e fundas rugas a sulcavam: eram ondas que o
vento da velhice lhe cavava no mar da vida... Sob espessas sobrancelhas
grisalhas lampejavam-lhe os olhos pardos e um espesso bigode lhe cobria parte
dos lábios. Trazia um gibão negro e roto, e um manto desbotado, da mesma cor,
lhe caia dos ombros.
— Quem és, velho? perguntou o
narrador.
— Passava lá fora, a chuva caia a
cântaros, a tempestade era medonha, entrei. Boa-noite, senhores! se houver mais
uma taça na vossa mesa, enchei-a ate as bordas e beberei convosco.
— Quem és?
—Quem eu sou? na verdade fora
difícil dizê-lo: corri muito mundo, a cada instante mudando de nome e de vida.
Fui poeta e como poeta cantei. Fui soldado e banhei minha fronte juvenil nos
últimos raios de sol da águia de Waterloo. Apertei ao fogo da batalha a mão do
homem do século. Bebi numa taverna com Bocage — o português, ajoelhei-me na
Itália sobre o túmulo de Dante e fui a Grécia para sonhar como Byron naquele
túmulo das glórias do passado. — Quem eu sou? Fui um poeta aos vinte anos, um
libertino aos trinta, sou um vagabundo sem pátria e sem crenças aos quarenta.
Sentei-me a sombra de todos os sóis, beijei lábios de mulheres de todos os
países; e de todo esse peregrinar só trouxe duas lembranças — um amor de mulher
que morreu nos meus braços na primeira noite de embriaguez e de febre — e uma
agonia de poeta... Dela, tenho uma rosa murcha e a fita que prendia seus
cabelos. Dele olhai...
O velho tirou do bolso um
embrulho: era um lençol vermelho o invólucro: desataram-no: dentro estava uma
caveira.
— Uma caveira! gritaram em torno:
és um profanador de sepulturas?
— Olha, moço, se entendes a
ciência de Gall e Spurzheim, dize-me pela protuberância dessa fronte, e pelas
bossas dessa cabeça quem podia ser esse homem?
— Talvez um poeta... talvez um
louco.
— Muito bem! adivinhaste. Só
erraste não dizendo que talvez ambas as coisas a um tempo. Sêneca o disse: — a
poesia é a insânia. Talvez o gênio seja uma alucinação e o entusiasmo precise
da embriaguez para escrever o hino sanguinário e fervoroso de Rouget de l'Isle,
ou para, na criação do painel medonho do Cristo morto de Holbein, estudar a
corrupção no cadáver. Na vida misteriosa de Dante, nas orgias de Marlowe, no
peregrinar de Byron havia uma sombra da doença de Hamlet: quem sabe?
— Mas a que vem tudo isso?
— Não bradastes — miséria e
loucura!... vós, almas onde talvez borbulhava o sopro de Deus, cérebros que a
luz divindade gênio esclarecia, e que o vinho enchia de vapores e a saciedade
de escárnios? Enchei as taças ate a borda! enchei-as e bebei; bebei a lembrança
do cérebro que ardeu nesse crânio, da alma que aí habitou, do poeta louco —
Werner! e eu bradarei ainda uma vez: — miséria e loucura!
O velho esvaziou o copo,
embuçou-se e saiu. Bertram continuou a sua história
— Eu vos dizia que ia passar-se
uma coisa horrível: não havia mais alimentos, e no homem despertava a voz do
instinto, das entranhas que tinham fome, que pediam seu cevo como o cão do
matadouro, fosse embora sangue.
A fome! a sede!... tudo quanto há
de mais horrível!...
Na verdade, senhores, o homem é
uma criatura perfeita? Estatuário sublime, Deus esgotou no talhar desse mármore
todo o seu esmero. Prometeu divino, encheu-lhe o crânio protuberante da luz do
gênio. Ergueu-o pela mão, mostrou-lhe o mundo do alto da montanha, como Satã
quarenta séculos depois o fez a Cristo, e disse-lhe: Vê, tudo isso e belo —
vales e montes, águas do mar que espumam, folhas das florestas que tremem e
sussurram como as asas dos meus anjos — tudo isso é teu. Fiz-te o mundo belo no
véu purpúreo do crepúsculo, dourei-to aos raios de minha face. Ei-lo rei da
terra! banha a fronte olímpica nessas brisas, nesse orvalho, na escuma dessas
cataratas. Sonha como a noite, canta como os anjos, dorme entre as flores!
Olha! entre as folhas floridas do vale dorme uma criatura branca como o véu das
minhas virgens, loira como o reflexo das minhas nuvens, harmoniosa como as
aragens do céu nos arvoredos da terra. É tua: acorda-a, ama-a e ela te amará;
no seio dela, nas ondas daquele cabelo, afoga-te como o sol entre vapores. Rei
no peito dela, rei na terra, vive de amor e crença, de poesia e de beleza,
levanta-te, vai, e serás feliz!
Tudo isso é belo, sim!... mas é a
ironia mais amarga, a decepção mais árida de todas as ironias e de todas as
decepções. Tudo isso se apaga diante de dois fatos muito prosaicos — a fome e a
sede.
O gênio, a águia altiva que se perde nas
nuvens, que se aquenta no eflúvio da luz mais ardente do sol — cair assim com
as asas torpes e verminosas no lodo das charnecas? Poeta! porque no meio do
arroubo mais sublime do espírito, uma voz sarcástica e mefistofélica te brada:
— meu Faust, ilusões... a realidade é a matéria!?... Deus escreveu L n a ´g k h na fronte de sua criatura! — Don
Juan! porque choras a esse beijo morno de Haidea que desmaia-te nos braços?!...
a prostituta vender-tos-a amanhã mais queimadores!... Miséria!... E dizer que
tudo o que há de mais divino no homem, de mais santo e perfumado na alma se
infunde no lodo da realidade, se revolve no charco e ache ainda uma convulsão
infame pare dizer — sou feliz!. . .
Isso tudo, senhores, pare
dizer-vos uma coisa muito simples... um fato velho e batido, uma pratica do
mar, uma lei do naufrágio — a antropofagia.
Dois dias depois de acabados os
alimentos, restavam três pessoas: eu, o comandante e ela. — Eram três figuras
macilentas como o cadáver, cujos peitos nus arquejavam como a agonia, cujos
olhares fundos e sombrios se injetavam de sangue como a loucura.
O uso do mar — não quero dizer a
voz da natureza física, o brado do egoísmo do homem —manda a morte de um para a
vida de todos. Tiramos a sorte... o comandante teve por lei morrer.
Então o instinto de vida se lhe
despertou ainda. Por um dia mais, de existência, mais um dia de fome e sede, de
leito úmido e varrido pelos ventos frios do norte, mais umas horas mortas de
blasfêmia e de agonia, de esperança e desespero, de orações e descrenças, de
febre e de ânsia, o homem ajoelhou-se, chorou, gemeu a meus pés...
— Olhai, dizia o miserável,
esperemos até amanhã... Deus terá compaixão de nos... Por vossa mãe, pelas
entranhas de vossa mãe! por Deus se ele existe! deixai, deixai-me ainda viver!
Oh! a esperança é pois como uma
parasita que morde e despedaça o tronco, mas quando ele cai, quando morre e
apodrece, ainda o aperta em seus convulsos braços! Esperar! quando o vento do
mar açoita as ondas, quando a escuma do oceano vos lava o corpo lívido e nu,
quando o horizonte é deserto e sem termo e as velas que. branqueiam ao longe
parecem fugir! Pobre louco!
Eu ri-me do velho. Tinha as
entranhas em fogo. Morrer hoje, amanhã, ou depois... tudo me era indiferente,
mas hoje eu tinha fome, e ri-me porque tinha fome.
O velho lembrou-me que me
acolhera a seu bordo, por piedade de mim, lembrou-me que me amava... e uma
torrente de soluços e lágrimas afogava o bravo que nunca empalidecera diante da
morte.
Parece que a morte no oceano é
terrível para os outros homens: quando o sangue lhes salpica as faces, lhes
ensopa as mãos, correm a morte como um rio ao mar, como a cascavel ao fogo. Mas
assim... no deserto das águas... eles temem-na, tremem diante da caveira fria
da morte!
Eu ri-me porque tinha fome.
Então o homem ergueu-se. A fúria
levantou nele com a última agonia. Cambaleava e um suor frio lhe corria no
peito descarnado. Apertou-me nos seus braços amarelentos, e lutamos ambos corpo
a corpo, peito a peito, pé por pé... por um dia de miséria!
A lua amarelada erguia sua face
desbotada, como uma meretriz cansada de uma noite de devassidão, o céu escuro
parecia zombar desses dois moribundos que lutavam por uma hora de agonia...
O valente do combate
desfalecia... caiu: pus-lhe o pé na garganta, sufoquei-o e expirou...
Não cubrais o rosto com as mãos —
faríeis o mesmo... Aquele cadáver foi nosso alimento dois dias...
Depois, as aves do mar já
baixavam para partilhar minha presa; e às minhas noites fastientas uma sombra
vinha reclamar sua ração de carne humana...
Lancei os restos ao mar...
Eu e a mulher do comandante
passamos um dia, dois, sem comer nem beber...
Então ela propôs-me morrer
comigo. — Eu disse-lhe que sim. Esse dia foi a última agonia do amor que nos
queimava: gastamo-lo em convulsões para sentir ainda o mel fresco da
voluptuosidade banhar-nos os lábios... Era o gozo febril que podem ter duas
criaturas em delírio de morte. Quando soltei-me dos braços dela a fraqueza a
fazia desvairar. O delírio tornava-se mais longo, mais longo: debruçava-se nas
ondas e bebia a água salgada, e oferecia-ma nas mãos pálidas, dizendo que era
vinho. As gargalhadas frias vinham mais de entuviada...
Estava louca.
Não dormi, não podia dormir: uma
modorra ardente me fervia as pálpebras, o hálito de meu peito parecia fogo,
meus lábios secos e estalados apenas se orvalhavam de sangue.
Tinha febre no cérebro... e meu
estômago tinha fome. Tinha fome como a fera.
Apertei-a nos meus braços,
oprimi-lhe nos beiços a minha boca em fogo, apertei-a convulsivo, sufoquei-a.
Ela era ainda tão bela!
Não sei que delírio estranho se
apoderou de mim. Uma vertigem me rodeava. O mar parecia rir de mim, e rodava em
torno, escumante e esverdeado, como um sorvedouro. As nuvens pairavam correndo
e pareciam filtrar sangue negro. O vento que me passava nos cabelos murmurava
uma lembrança.
De repente senti-me só. Uma onda
me arrebatara o cadáver. Eu o vi boiar pálido como suas roupas brancas, seminu,
com os cabelos banhados de água; eu via-o erguer-se na escuma das vagas,
desaparecer, e boiar de novo; depois não o distingui mais: — era como a escuma
das vagas, como um lençol lançado nas águas...
Quantas horas, quantos dias
passei naquela modorra nem o sei... Quando acordei desse pesadelo de homem
desperto, estava a bordo de um navio.
Era o brigue inglês Swallow, que me salvara...
Olá, taverneira, bastarda de
Satã! não vês que tenho sede, e as garrafas estão secas, secas como tua face
como nossas gargantas?
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ATIVIDADES APÓS A LEITURA DO CONTO:
1 - Qual foi o tema abordado no conto?
2- Em que lugar aconteceram os fatos?
3- Quando aconteceram os fatos?
4- O que faz da história um conto fantástico?
5- Sintetize o enredo do conto.
* Realizar as atividades no caderno, elas serão conferidas em sala pelo professor.
Prof. Sérgio Luiz de Mello
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ATIVIDADES APÓS A LEITURA DO CONTO:
1 - Qual foi o tema abordado no conto?
2- Em que lugar aconteceram os fatos?
3- Quando aconteceram os fatos?
4- O que faz da história um conto fantástico?
5- Sintetize o enredo do conto.
* Realizar as atividades no caderno, elas serão conferidas em sala pelo professor.
Prof. Sérgio Luiz de Mello
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